segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A construção de uma vilã

O minucioso trabalho de Patrícia Pillar como Flora faz
A Favorita chegar à reta final como sucesso de público


A FORÇA DO OLHAR
Rosto levemente inclinado para baixo, olhos ligeiramente erguidos. Para especialistas que analisaram esta foto, o resultado é a legítima expressão do psicopata, na qual não existe sentimento


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Quadro: Flora Pereira da Silva por Patrícia Pillar

Quando aceitou o convite para viver a Flora de A Favorita, Patrícia Pillar sabia que estava correndo um risco. Aos 44 anos e dona de uma carreira pontuada por personagens do bem, encararia sua primeira vilã, na primeira novela em horário nobre de um autor jovem e disposto a contrariar os modelos consagrados por seus pares mais experientes. A Flora criada por João Emanuel Carneiro entrou em cena como uma ex-presidiária com jeito de santinha injustiçada, revelou-se uma assassina dissimulada e caiu em desgraça à medida que foi engolida por suas carências afetivas. Poderia facilmente descambar para uma vilã memorável, mas caricata, como a Nazaré de Renata Sorrah em Senhora do Destino. No entanto, essa trajetória inverossímil ganhou consistência. Graças a um milimétrico trabalho de construção da personagem, Flora afirmou-se como uma das vilãs mais complexas já surgidas nas novelas brasileiras e fez de A Favorita um sucesso em sua reta final. "Ela alcançou o olhar legítimo do psicopata, da falta de sentimento. Inclina levemente o rosto para baixo e ergue sutilmente os olhos, como um predador", diz a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do livro Mentes Perigosas: o Psicopata Mora ao Lado, usando a foto desta página como exemplo. A trajetória da vilã é a chave para a escalada de A Favorita no ibope. A novela tem audiência média modesta, de 40 pontos. Mas, desde dezembro, vários capítulos chegaram perto dos 50. Aquele em que Silveirinha (Ary Fontoura) troca de lado, aliando-se a Donatela (Claudia Raia) contra Flora, bateu em 51 pontos, o recorde desde o início da trama.

Esse desempenho acabou dando trabalho extra a Carneiro na reta final. Na quinta-feira, a oito dias do gran finale, o destino de Flora foi revelado por um jornal carioca. Irritado com o vazamento dessa e de outras cenas importantes, o autor decidiu fazer mudanças no último capítulo. Na versão tornada pública, a punição reservada à megera era ficar prisioneira de sua fixação maníaca pela irmã postiça Donatela. Ela voltaria para a cadeia, onde, ao vê-la lavando as calcinhas de outras presidiárias, uma novata perguntaria seu nome e ela diria: "Donatela". No novo desfecho, será mantida a punição retumbante que se costuma reservar aos grandes vilões de novelas. Mas o que exatamente acontecerá com a protagonista só será decidido o mais perto possível da gravação da cena. O certo é que, na última semana, a vilã mergulhará cada dia mais na espiral de loucura em que entrou desde que se apoderou do rancho dos Fontini – família em torno da qual giraram muitas de suas crueldades – e cobriu as paredes com cartazes da dupla sertaneja Faísca e Espoleta, que formou vinte anos antes ao lado de Donatela.

Flora continuará terrivelmente má. Vai matar o bandido pé-de-chinelo Dodi (Murilo Benício), esfaquear o comparsa arrependido Silveirinha, infernizar o casamento e a lua-de-mel de Donatela com o repórter Zé Bob (Carmo Dalla Vecchia). Mas já estará vencida. Não pelo tiro que vai levar – na versão original, de sua filha, Lara (Mariana Ximenes); na nova, de Silveirinha ou Irene (Glória Menezes). Nem pela polícia – antes de ser presa, ela ainda fica foragida por algum tempo. O que vai minar a resistência de Flora é a carência de afeto, pano de fundo de todo o seu desajuste. A vilã julga que, na infância, sofreu rejeição das duas pessoas que mais amava – o pai e a companheira de trinados sertanejos. E a heroí-na decide se valer dessa fragilidade como arma para desbancá-la. "O afeto da irmã é a criptonita que derrubará Flora", diz o autor João Emanuel Carneiro, referindo-se à rocha fictícia que é a única coisa capaz de exaurir as forças do Super-Homem.

TV Globo/divulgação

ATOR-FETICHE
Preferido do autor da novela, Carmo Dalla Vecchia interpretou Zé Bob, o repórter-galã que namorou Flora e Donatela

A construção de Flora foi feita a quatro mãos. O texto é 100% de Carneiro – mas o jeito de ser da megera foi elaborado por Patrícia Pillar à custa de muito estudo e suor (veja o quadro). Patrícia dedicou todo o ano de 2008 à personagem. A imersão tem consequências até mesmo físicas. Volta e meia, ela termina as gravações ofegante. "O corpo não sabe que tudo aquilo é de mentira", diz. Devotada e incansável, ela deu sugestões até no figurino: foi sua a ideia de que as mudanças no visual da personagem fossem graduais. "Comecei no teatro, onde a gente precisava participar de tudo. Novela é um trabalho longo, e o perigo é você arrumar uma fórmula de interpretar e se repetir", diz. Carneiro não economiza elogios. "É muito bom quando o ator vai além do que está escrito e encontra a alma de um personagem. Patrícia tornou Flora tão palpável que dá arrepios", diz ele. O noveleiro se inspirou num personagem de Shakespeare, o pérfido Ricardo III, para criar Flora. "Ambos têm em comum o fato de lançar mão da maldade para preencher o seu vazio interior", afirma.

O nome de Patrícia surgiu como alternativa natural na busca da protagonista de uma novela que tinha como grande lance da primeira fase a ocultação da verdadeira identidade de Flora. A atriz tem uma imagem impecável junto ao público. Tanto pelos papéis que desempenhou ao longo da carreira quanto por sua vida pessoal. O público a admira pelo relacionamento de quase uma década com o deputado federal e ex-ministro Ciro Gomes, pontuado por uma evidente cumplicidade e por flagrantes românticos em bares do Rio de Janeiro e bailes Brasil afora. E pela coragem com que enfrentou um câncer de mama, do qual se operou em dezembro de 2001. Na ocasião, ela quebrou sua tradicional discrição para falar da doença e da importância da prevenção. E não se furtou a aparecer em eventos públicos com os cabelos ralos, em início de recuperação dos efeitos da quimioterapia.

Das dez últimas novelas das 8, metade teve nos vilões um elemento crucial para o sucesso. Algo que não chega a ser surpreendente. "Alfred Hitchcock já dizia que um filme é tão bom quanto seu vilão", diz o experiente autor Silvio de Abreu, que foi supervisor de Carneiro na Rede Globo. Chama atenção o fato de que, das cinco tramas em questão, nada menos do que quatro tenham mulheres nesses papéis. Na opinião de Carneiro, vilãs são mais populares que seus similares masculinos: remetem ao arquétipo da bruxa, da mãe má. Aguinaldo Silva, criador da Nazaré de Senhora do Destino, sustenta que vilões e especialmente vilãs fazem sucesso porque se tornaram os canais de expressão do pensamento politicamente incorreto dentro dos folhetins. Se seus atos são sempre tenebrosos, sua linguagem choca, mas também tem um quê pitoresco, irreverente, que às vezes faz rir. Flora, além de chamar o pai, que sofre de Par-kinson, de "tremelique", vociferou em sua própria festa de casamento: "Fora, classe média". "Ela diz o indizível", diverte-se Carneiro.

Flora é a cereja do bolo de uma trama que, em muitos aspectos, contrariou o modelo em voga no horário das 8. Em vez de buscar inspiração em temas sociais reais e diluir a narrativa em mil subtramas, Carneiro apostou todas as fichas numa história central forte. Ao contrário dos colegas de profissão, que chegam a criar uma centena de personagens, ele elegeu apenas 35 atores para seu elenco. Isso dá muito trabalho aos protagonistas. Patrícia chegou a participar de gravações que duraram quinze horas. "Eu tinha só uma bala no revólver. Se o embate de Flora e Donatela não caísse no gosto do público, estaria perdido", diz o autor. A maior ousadia, contudo, talvez esteja em outro ponto: Carneiro aboliu a tradicional encheção de linguiça que a certa altura toma conta das novelas. A característica mais marcante da trama é o ritmo vertiginoso com que novas situações surgem e são resolvidas. "A Favorita tem uma velocidade estonteante", diz o diretor Ricardo Waddington.

Depois de amargar o pior ibope de estreia de uma novela das 8 em todos os tempos, em razão da estratégia da concorrente Record de levar ao ar o final da primeira temporada de seu folhetim sobre mutantes na mesma noite, a novela estacionou num patamar crítico de audiência. Ainda assim, por dois meses Carneiro ousou desafiar um dos cânones básicos dos folhetins: em vez de prover logo de cara uma heroína com quem os espectadores pudessem se identificar, investiu na ambivalência. Ora se insinuava que Donatela era a verdadeira vilã e Flora a mocinha, ora se dava a entender que era o contrário. O capítulo em que Flora se revelou a assassina lavou a alma do noveleiro: atingiu 46 pontos de média. A partir daí, começou o crescendo que pouco a pouco foi arrebatando o público e transformou Flora em assunto de incontáveis rodas. Suas maldades, por vezes, eram rebuscadas – como o assassinato do patriarca Gonçalo (Mauro Mendonça), cujo plano incluiu um banho de sangue que emulava o do filme O Iluminado, de Stanley Kubrick (a diferença, aqui, é que o sangue foi obtido de forma caseira: Silveirinha tratou de bater no liquidificador peças de picanha tiradas do freezer às pressas). Nas últimas semanas, a atração foi outra: as cenas em que as maldades de Flora foram descobertas pelos principais personagens, como a tontíssima Irene.

Carneiro salpicou A Favorita, ainda, de várias outras "subversões", como ele gosta de dizer. Em seu desprezo pela filha, Flora vai contra o que há de mais sagrado no melodrama: os laços de sangue. "O que mais choca as pessoas não é o fato de ela matar – e sim de chamar a filha de ‘purgantezinha’.", diz. A novela não teve logo de início um par romântico por quem se pudesse torcer. Por fim, investiu em subtramas polêmicas. Havia o clã negro disfuncional, com o deputado corrupto vivido por Milton Gonçalves, sua filha fútil e o filho beberrão – hoje redimidos. Carneiro abordou ainda a homossexualidade de formas diferentes. Primeiro, com Orlandinho (Iran Malfitano), um playboy enrustido patético que chega ao fim da trama sofrendo um processo de "des-homossexualização" – para horror do movimento gay. E há também a história de Catarina (Lilia Cabral), a dona-de-casa que foi feita de gato e sapato por um marido monstruoso até descobrir a amizade com a lésbica Stela (Paula Burlamaqui).

Com tantas inovações, é surpreendente o sucesso da novela junto a um público tido como conservador. Um dos termômetros de que a trama caiu no gosto popular é que está sendo difícil manter segredo sobre o conteúdo dos capítulos. Todos os dias um veículo publica alguma informação, numa disputa semelhante à que se trava em A Favorita em torno do famoso DVD que incrimina Flora. Faz parte do jogo. Mas, mesmo que o autor consiga bolar cenas ainda mais mirabolantes e inesperadas, isso nem de longe será o principal aspecto da originalidade da trama que foi ao ar nos últimos sete meses. O folhetim de estreia de João Emanuel Carneiro no horário nobre será lembrado, principalmente, pela formidável construção de Flora Pereira da Silva.

MATÉRIA: REVISTA VEJA

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