Durante as gravações de Rei Davi, a nova série bíblica da Rede Record, um detalhe causou o maior perereco entre os bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, que controlam a emissora. Eles advertiram a roteirista Vivian de Oliveira e o diretor Edson Spinello sobre certa cena de bruxaria que seria exibida no segundo episódio. “Os bispos queriam que a feitiçaria fosse mostrada como algo grotesco, pois temiam endossar um culto do mal”, diz uma fonte nos bastidores. Mas isso não impediu que rolasse o diabo no set: a atriz Cibele Larrama, que faz a bruxa Allat, foi parar no hospital após queimar o rosto e os cabelos em uma fogueira nada santa.
Essa intervenção não foi isolada: no ar há quinze dias, Rei Davi é um empreendimento feito em total sinergia — para usar um jargão empresarial apropriadíssimo — entre a igreja chefiada por Edir Macedo e a emissora de que ele é dono. A produção de 29 episódios trata de personagens e símbolos do Antigo Testamento recorrentes nas pregações da Universal. Os bispos revisam cada linha do roteiro e impõem adendos doutrinários. Nos cultos e na internet, exortam os fiéis a ver a série — que já bateu a líder Globo mais de uma vez na faixa das 11 e meia da noite. Sua trama tem sido usada, ainda, nos discursos religiosos. “O rei Saul tentou matar Davi porque Davi tinha o que ele não tinha: Deus”, sentenciou em seu blog Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo e apresentadora de um programa comportado sobre casamentos exibido nas tardes de sábado da Record.
Logo na abertura de Rei Davi, surge em close uma representação da Arca da Aliança, relíquia que estabeleceria uma conexão direta entre as doze tribos de Israel e Deus — mas cuja existência nunca foi amparada pela arqueologia. O empréstimo pela igreja do mote do filme Os Caçadores da Arca Perdida, de Steven Spielberg, se evidencia no nome de seu site na internet: Arca Universal. A certa altura da trama, Davi (Leonardo Brício) verá em sonhos o templo que somente seu filho e sucessor Salomão conseguirá construir: o primeiro dos dois edifícios desse tipo que, de acordo com a Bíblia, teriam existido em Jerusalém em tempos remotos (apenas do segundo desses, erigido por Herodes no século I d.C., há uma ruína comprovada, o Muro das Lamentações). Pois bem: valerá a pena conferir se a imagem de que a série vai sacar não será a da maquete da sede nababesca que a Universal está construindo na Zona Leste de São Paulo. A obra é vendida pela turma de Macedo, com a humildade esperada, como a terceira e mais monumental versão do Templo de Salomão. Elementos do Antigo Testamento são cultuados pelas igrejas neopentecostais em geral, e pela Universal com particular obsessão, por suas narrativas espetaculares. “Enquanto nos Evangelhos os milagres de Jesus são pontuais e mais discretos, nesses livros bíblicos Deus leva à vitória em guerras, aniquila inimigos e torna as pessoas ricas. Mas associar a construção de um novo templo à conquista de benesses assim é uma bobagem histórica”, diz o teólogo Luiz Felipe Pondé.
Rei Davi é a terceira incursão da rede nas séries bíblicas — as outras foram A História de Ester, em 2010, e Sansão e Dalila, no ano passado. É também o produto de maior ostentação já produzido pela Record. Para narrar a vida do herói que venceu o gigante Golias e se tornou rei de Israel, planejava-se investir 18 milhões de reais. Só que o orçamento logo subiu para 25 milhões e, segundo gente próxima à cúpula da emissora, pode estourar os 30 milhões. Mas a megalomania na TV é fichinha perto da megalomania terrena. O “Templo de Salomão” custará mais de 360 milhões de reais. Terá torres de concreto com 55 metros de altura e abrigará 10 000 pessoas. Em seu altar, haverá uma réplica da Arca da Aliança — a qual terá sua imagem projetada sobre um tanque de batismo, dando aos fiéis a sensação de estar se banhando nela. Curioso é que esses investimentos ocorram quando a igreja vê a arrecadação do dízimo minguar pela ascensão de concorrentes como a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, e a Record passa por uma fase de corte de gastos imposta por Macedo.
A estética kitsch do projeto do templo é comungada por Rei Davi. A série tem cenas de batalha grandiosas. Coreografada em câmera lenta, a luta de Davi com Golias também impressionou. Salta aos olhos que não houve economia, enfim — mas os detalhes entregam o gosto duvidoso. Davi e o rei Saul (Gracindo Jr.) saracoteiam pela Terra Santa com echarpes e microssaiotes. O profeta Samuel (Isaac Bardavid) e seus pares exibem turbantes carnavalescos. A série tempera as Escrituras com dramalhão mexicano. “Meu amor por você é tão grande que chega a doer”, já soltou uma personagem. Das dores da grandeza, não há dúvida, esse time entende.
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Essa intervenção não foi isolada: no ar há quinze dias, Rei Davi é um empreendimento feito em total sinergia — para usar um jargão empresarial apropriadíssimo — entre a igreja chefiada por Edir Macedo e a emissora de que ele é dono. A produção de 29 episódios trata de personagens e símbolos do Antigo Testamento recorrentes nas pregações da Universal. Os bispos revisam cada linha do roteiro e impõem adendos doutrinários. Nos cultos e na internet, exortam os fiéis a ver a série — que já bateu a líder Globo mais de uma vez na faixa das 11 e meia da noite. Sua trama tem sido usada, ainda, nos discursos religiosos. “O rei Saul tentou matar Davi porque Davi tinha o que ele não tinha: Deus”, sentenciou em seu blog Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo e apresentadora de um programa comportado sobre casamentos exibido nas tardes de sábado da Record.
Logo na abertura de Rei Davi, surge em close uma representação da Arca da Aliança, relíquia que estabeleceria uma conexão direta entre as doze tribos de Israel e Deus — mas cuja existência nunca foi amparada pela arqueologia. O empréstimo pela igreja do mote do filme Os Caçadores da Arca Perdida, de Steven Spielberg, se evidencia no nome de seu site na internet: Arca Universal. A certa altura da trama, Davi (Leonardo Brício) verá em sonhos o templo que somente seu filho e sucessor Salomão conseguirá construir: o primeiro dos dois edifícios desse tipo que, de acordo com a Bíblia, teriam existido em Jerusalém em tempos remotos (apenas do segundo desses, erigido por Herodes no século I d.C., há uma ruína comprovada, o Muro das Lamentações). Pois bem: valerá a pena conferir se a imagem de que a série vai sacar não será a da maquete da sede nababesca que a Universal está construindo na Zona Leste de São Paulo. A obra é vendida pela turma de Macedo, com a humildade esperada, como a terceira e mais monumental versão do Templo de Salomão. Elementos do Antigo Testamento são cultuados pelas igrejas neopentecostais em geral, e pela Universal com particular obsessão, por suas narrativas espetaculares. “Enquanto nos Evangelhos os milagres de Jesus são pontuais e mais discretos, nesses livros bíblicos Deus leva à vitória em guerras, aniquila inimigos e torna as pessoas ricas. Mas associar a construção de um novo templo à conquista de benesses assim é uma bobagem histórica”, diz o teólogo Luiz Felipe Pondé.
Rei Davi é a terceira incursão da rede nas séries bíblicas — as outras foram A História de Ester, em 2010, e Sansão e Dalila, no ano passado. É também o produto de maior ostentação já produzido pela Record. Para narrar a vida do herói que venceu o gigante Golias e se tornou rei de Israel, planejava-se investir 18 milhões de reais. Só que o orçamento logo subiu para 25 milhões e, segundo gente próxima à cúpula da emissora, pode estourar os 30 milhões. Mas a megalomania na TV é fichinha perto da megalomania terrena. O “Templo de Salomão” custará mais de 360 milhões de reais. Terá torres de concreto com 55 metros de altura e abrigará 10 000 pessoas. Em seu altar, haverá uma réplica da Arca da Aliança — a qual terá sua imagem projetada sobre um tanque de batismo, dando aos fiéis a sensação de estar se banhando nela. Curioso é que esses investimentos ocorram quando a igreja vê a arrecadação do dízimo minguar pela ascensão de concorrentes como a Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago, e a Record passa por uma fase de corte de gastos imposta por Macedo.
A estética kitsch do projeto do templo é comungada por Rei Davi. A série tem cenas de batalha grandiosas. Coreografada em câmera lenta, a luta de Davi com Golias também impressionou. Salta aos olhos que não houve economia, enfim — mas os detalhes entregam o gosto duvidoso. Davi e o rei Saul (Gracindo Jr.) saracoteiam pela Terra Santa com echarpes e microssaiotes. O profeta Samuel (Isaac Bardavid) e seus pares exibem turbantes carnavalescos. A série tempera as Escrituras com dramalhão mexicano. “Meu amor por você é tão grande que chega a doer”, já soltou uma personagem. Das dores da grandeza, não há dúvida, esse time entende.
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